quarta-feira, 18 de outubro de 2006

Saber ver – parte 2









Das minhas últimas leituras, nada me tocou mais profundamente do que “A Arte de Viajar” (editora Rocco), do excepcional Alain de Botton, tão pungente que parece emanar sincronicidades. Sensação experimentada também pela Karlinha, a quem emprestei o livro depois de chegar de viagem.

Presente do dia dos namorados, semanas antes do meu embarque, o livro me causou comoção assim que pus os olhos nele. Era o meu anti-guia: nada de mapas nem dicas de lugares a serem visitados na cidade-destino. Ali, eu teria uma chance de descobrir porque viajar me parecia tão absolutamente necessário naquele momento. Ou de, pelo menos, aprender o que as novas paisagens poderiam revelar sobre as minhas paisagens interiores.

Com a palavra, o autor: “As viagens são parteiras do pensamento. Poucos locais são mais propícios a conversas interiores do que um avião, um navio ou um trem em movimento. Há uma correlação quase estranha entre o que está diante de nossos olhos e os pensamentos que nos podem ocorrer: grandes pensamentos às vezes exigem grandes panoramas, novos pensamentos, novos lugares. Reflexões introspectivas que têm a propensão a bloquear-se recebem ajuda para prosseguir com a passagem ininterrupta da paisagem”.

Leio mais alguns parágrafos, adormeço durante o vôo e retorno à leitura só de manhã, já me aproximando do primeiro destino. Para minha surpresa, lá embaixo e na página diante de mim, o lugar era o mesmo: aeroporto Schiphol, Amsterdã. Ainda que minha presença no lugar tenha sido do tipo relâmpago por conta da conexão para Milão, experimentei a gratificante sensação de que ali era exatamente onde eu deveria estar naquele instante.

No dia seguinte, no trem de Milão para o Vale d’Aosta a fim de visitar a querida Jana, leio sobre as aventuras pessoais de Flaubert no Egito e sobre as descobertas científicas de Alexander von Humboldt na América do Sul. O livro é “costurado” com as viagens do autor e a de escritores, pintores e pensadores que foram inspirados pelo ato de viajar em todas as suas formas.

Ao falar sobre sua visita ao deserto do Sinai, Alain evoca o elo entre Deus e as paisagens sublimes e arrebatadoras, relatando o desespero de Jó quando sua vida se enche de desgraças e sofrimento. Sem entender porque é castigado, pois era um homem bom, ele ouve a resposta. Um Deus furioso enumera todos os fenômenos da natureza para fazê-lo enxergar a sua pequenez e a compreender que a sua vida não é a medida de todas as coisas.

E, cá entre nós, existe melhor maneira de se sentir minúsculo do que diante de uma montanha? Não mesmo, ainda mais se ela estiver branquinha em pleno verão e a pessoa em questão nunca tiver visto neve na vida...








A minha viagem ainda me traria outras paisagens sublimes, como a absolutamente encantadora Lugano, na Suíça, cujas imagens eu procuro acessar mentalmente quando preciso de referências de paz e tranqüilidade.




A viagem de Alain de Botton continuou pela Provença, guiada pelas pinturas de Van Gogh, aprendendo a olhar com os olhos do pintor. Londres, o ponto de partida do autor, é também o de chegada. Mas a cidade já era outra. As coisas estavam no mesmo lugar, mas ele começou a enxergá-las de fato.

Antes do ponto final, Alain transcreve um pensamento de Nietzsche: “Quando observamos como algumas pessoas sabem gerir suas experiências – suas experiências insignificantes, do dia-a-dia – de tal modo que elas se tornem um solo arável que produz frutos três vezes ao ano, enquanto outras – e como essas são numerosas! – são arrebatadas pelas grossas ondas do destino, pelas correntes mais multifacetadas dos tempos e das nações, e ainda assim estão sempre à tona, como uma rolha de cortiça, acabamos sendo tentados a dividir a humanidade numa minoria (ínfima) dos que sabem extrair muito do pouco e uma maioria dos que sabem extrair pouco do muito”.

Um comentário:

Janaína Ávila disse...

Que delicia de texto Ro... adorei!