segunda-feira, 6 de novembro de 2006

Oito décadas de estilo




Ele nasceu para vestir a nova mulher que surgia no início do século 20, livre do opressor espartilho, sedenta por liberdade de movimentos e de escolhas. Acompanhou as mudanças no guarda-roupa feminino no pré e pós guerra, conferindo ora austeridade, ora sofisticação. Virou ícone de estilo na pele de Audrey Hepburn em “Bonequinha de Luxo”, de 1961, e uma espécie de uniforme fashion nos minimalistas anos 90. Hoje, em plena maturidade, vive uma fase mais seletiva, aparecendo apenas em momentos de supremo glamour.







O pretinho básico – amado e idolatrado pelas mulheres, curinga e alento para aqueles momentos em que nada parece adequado para se vestir – está completando 80 anos em 2006. A certidão de nascimento da peça é a publicação, pela Vogue americana, de um croqui de Chanel (um vestido preto de mangas compridas), que a revista chamou de “o Ford da moda”. Era uma alusão ao carro fabricado por Henry Ford (o modelo T), sucesso de vendas na época. Tanto a criação de Chanel como a de Ford eram pretas, práticas, modernas, com design simples feito para as massas.



O vestido preto de Chanel foi um golpe na extravagância com a qual as mulheres se vestiam até então. Era simples, chique e fazia qualquer uma se sentir bem em qualquer lugar. Exatamente o que pedia a revolucionária década de 20. “O pretinho olhava para a frente, para o futuro. Era usado por jovens figuras esbeltas, de cabelos curtos e pernas nuas, melindrosas que bebiam gim contrabandeado e rejeitavam a moda sufocante da época de suas mães”, escreve Nancy Macdonell Smith no livro “O Pretinho Básico” (editora Planeta).

Assim como os novos hábitos femininos, a popularização do vestido preto não era vista com bons olhos pelos mais tradicionais. Conta-se que o costureiro Paul Poiret, que não se adaptava à era do jazz, certa vez perguntou a Chanel, vestida de preto. “Você está de luto por quem, mademoiselle? “Por você, monsieur”, foi a resposta certeira dela.

Segundo a jornalista Alexandra Farah, à frente do projeto “Filme Fashion”, mais que o sutiã, a calça jeans e a camiseta, o vestido preto é a peça com maior conteúdo político do guarda-roupa feminino. Não é para menos. Conforme as mulheres se tornavam mais ocupadas e seu status dependia cada vez menos da riqueza de seus maridos, elas precisavam de roupas que fossem requintadas, mas confortáveis, chiques, mas versáteis, belas e, no entanto, práticas. O pretinho era a solução perfeita.

A força do vestido preto reside, sobretudo, na sua imensa capacidade de adaptação ao espírito dos tempos. Sóbrio e sem requintes durante a Grande Depressão dos anos 30; impecavelmente elegante na década de 50, ele encontrou definitivamente a sua cara metade no início dos anos 60. Com o lendário tubinho preto de Givenchy, criado especialmente para o filme “Breakfast at Tiffany’s” ( Bonequinha de Luxo) Audrey Hepburn selou o casamento entre o pretinho básico e a sofisticação, imprimindo na memória coletiva uma das imagens de moda mais clássicas da história do cinema. A atriz usa o vestido em quase todas as cenas e está sempre perfeitamente adequada.


A moda viveu outros momentos depois dessa parceria mágica entre Hepburn e Givenchy - e o pretinho, camaleão que é, sempre esteve presente: seja na atitude punk rock do final dos anos 70 – e no seu forte apelo sexual traduzido com maestria por fotógrafos como Helmut Newton – seja na proposta vanguardista, disforme e quase assexuada dos japoneses nos anos 80.






Mas a imagem clássica da elegância simples, cristalizada na figura de Audrey, tem permanecido como referência de feminilidade e estilo que, vez ou outra, a moda aciona para traduzir seus desejos. É o que está acontecendo agora. A tendência se confirma com o lançamento de uma biografia da atriz e com o leilão do vestido original de Givenchy no próximo dia 5 de dezembro, em Londres.


Apesar de a feminilidade evocada por Audrey Hepburn estar em alta, isso não quer dizer que o pretinho esteja vivendo uma de suas melhores fases. Na gangorra da moda, o momento é de baixa, já que há várias temporadas as cores dominam a cena (pelo menos até a próxima temporada brasileira, já que nas atuais coleções de inverno do hemisfério norte o preto é tendência forte).


Mas, por aqui, até mesmo os estilistas não adeptos reconhecem o poder do pretinho. “Nem conto como cartela de cor, simplesmente porque ele é essencial”, diz Mônica Negreiros, cujas coleções produzidas em Londrina, sempre marcadas pelo uso de cores e estampas, são vendidas em todo o País. Ela relata que, apesar de uma certa rejeição momentânea, os lojistas que fazem compras em seu show-room em São Paulo nunca deixam de levar modelos pretos. “Na hora de atenderem clientes que vestem tamanhos maiores, eles sabem que o preto é sempre uma boa opção”, diz. Um sinal dos tempos, entretanto, é que o adjetivo básico não se aplica mais ao pretinho. “Hoje, as pessoas querem algo mais”, revela.


Fato confirmado por outra especialista em moda feminina, a londrinense Sílvia Dorê. “A maioria das clientes não quer o preto, mas elas acabam levando quando a peça tem alguma informação de moda”, explica. Esse algo mais poderia ser traduzido por personalidade, atitude, feminilidade e outros valores caros ao imaginário fashion atual. Mas, para Sílvia, a palavra certa é glamour.
Um bom exemplo? A cena do baile de gala em que Miranda Priestly e Andrea Sachs (Maryl Streep e Anne Hathaway) surgem a bordo de pretinhos longos, absolutamente deslumbrantes, assinados por Valentino e Galliano, no filme “O diabo veste Prada”, cujo figurino é o sonho de consumo de todas as mulheres apaixonadas por moda.

Texto originalmente publicado na Folha de Londrina, dia 05/11/06.



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